Biologia dos Tatuzinhos
Os “tatuzinhos” são crustáceos terrestres pertencentes à ordem Isopoda. Essa ordem é uma das maiores ordens de Crustáceos e contém o maior grupo de crustáceos verdadeiramente terrestres. Existem mais de 200 espécies de Crustáceos Isópodes terrestres, pertencentes à subordem Oniscidea, que se distribuem desde regiões litorâneas até desertos. Esses animais são popularmente conhecidos como “tatuzinhos”, “tatuzinhos-de-jardim”, “bichos-de-conta” ou “tatus-bolinha”, devido à capacidade que algumas espécies possuem de se enrolar. São animais que trazem muitos benefícios ao solo, sendo essenciais no processo de decomposição da matéria orgânica, além de ajudar na aeração e na retenção de umidade. Entre todas as mais de 200 espécies descritas, apenas quatro podem trazer algum tipo de dano à agricultura, normalmente em situações em que ocorre diminuição da diversidade de espécies no ambiente e as populações tornam-se muito grandes. São elas: Armadillidium vulgare, Porcellio laevis, Porcellionides pruinosus e Benthana picta.
Morfologia
Posssuem de 5 a 15 mm de comprimento, corpo achatado e cabeça em forma de escudo. Os segmentos abdominais podem ser distintos ou fundidos, sendo que o último segmento abdominal geralmente é fundido com o télson (último segmento do corpo de um artrópodo). O aparelho bucal é formado por peças bucais compactas, que formam uma massa bucal prognata (com as mandíbulas proeminentes), protegida por apêndices especializados. As mandíbulas são rígidas, o que torna possível a mastigação da matéria vegetal da serapilheira (camada formada pela deposição e acúmulo de matéria orgânica morta em diferentes estágios de decomposição, que reveste superficialmente o solo). Durante a alimentação, o alimento é sustentado pelas pernas anteriores.
Como todo crustáceo, possuem 2 pares de antenas, porém nesses animais o primeiro par de antenas é apenas vestigial. As antenas constituem o principal órgão sensorial. Possuem olhos compostos e pouco desenvolvidos, provavelmente relacionados a seu comportamento discreto e noturno e a uma dieta formada predominantemente por vegetação em decomposição, que não exige uma visão desenvolvida para ser localizada. O corpo apresenta uma coloração geralmente acinzentada.
A arquitetura do corpo está intimamente relacionada com o tipo de ambiente explorado por cada espécie e com seu comportamento. Assim, a maioria das espécies de isópodes terrestres pode ser classificada como:
• “Corredores”: corpo estreito e alongado, pernas fortes e tergos (cutícula que recobre as “costas” do animal) delicados; quando descobertos correm a encontrar um novo lugar que lhes sirva de abrigo;
• “Aderentes”: placas dorsais largas com borda côncava; quando descobertos pressionam o corpo contra o substrato, aderindo às bordas côncavas de modo que se torna difícil removê-los;
• “Roladores”: esses são os popularmente conhecidos como “tatu-bola”, cujo corpo possui uma seção transversal semicircular, de tal modo que quando se enrolam formam uma esfera perfeita;
• “Espiniformes”: possuem protuberâncias em forma de espinho e são capazes de se enrolar, protegendo-se contra predadores; habitam florestas tropicais;
• “Rastejadores”: tamanho máximo de 5 mm, tergitos (estrutura dura dorsal) com estruturas em arcos longitudinais, secção do corpo cilíndrica e pernas curtas e frágeis; habitam interstícios e cavernas;
• “Não-conformistas”: reunião de arquiteturas variadas que não se enquadram em nenhuma outra por terem adaptações específicas para um nicho (exemplo: habitantes de ninhos de aves).
Hábito
Os isópodes terrestres perdem água para o ambiente com facilidade. Assim, possuem adaptações comportamentais, morfológicas e fisiológicas que ajudam a evitar a essa perda excessiva. Um exemplo claro é a permanência em ambientes úmidos. Em geral são fotonegativos (fogem da luz e claridade) e podem diferenciar pequenas alterações na umidade, possibilitando a busca por abrigos protetores durante o dia. Algumas espécies possuem a capacidade de enrolar-se como uma bola (capacidade volvacional), o que também pode auxiliar na redução da quantidade de água perdida.
A água perdida por evaporação é reposta através do alimento úmido e bebida. Possuem uma dieta composta predominantemente por material de origem vegetal, o que é possível devido à associação com microorganismos que quebram a celulose e a lignina no tubo digestivo. Ingerem principalmente o material vegetal presente na serrapilheira. Alimentam-se também de algas, fungos, liquens, cascas de árvore e qualquer material animal ou vegetal em decomposição. Algumas espécies são carnívoras.
Defesa
A capacidade volvacional, além de auxiliar na redução da perda de água por evaporação, fornece proteção contra predadores. Outros mecanismos de defesa encontrados são o de fuga, o de “fingir-se” de morto (tanatose) ou o de agarrar-se fortemente ao substrato. Possuem também glândulas repugnantes que auxiliam na defesa contra predadores como formigas e aranhas.
Respiração
Como outros crustáceos, os tatuzinhos realizam troca gasosa através de brânquias, protegidas por uma estrutura chamada opérculo. Nos tatuzinhos, a forma do opérculo (com invaginações e pseudotraquéias) permite a tolerância a um ar mais seco e as brânquias retêm uma camada superficial de umidade.
Reprodução
A reprodução é sexuada. O macho reconhece a fêmea e determina o seu estado sexual com sua antena, provavelmente por meio de feromônios (substâncias químicas secretadas por um indivíduo, que provocam reações comportamentais em outro indivíduo da mesma espécie).
Os crustáceos possuem apêndices abdominais, chamados pleópodes, que são utilizados na locomoção. Nos machos desses isópodes, os primeiros dois pares de pleópodos são órgãos copulatórios. A fêmea possui aberturas genitais, chamadas gonóporos. Durante a cópula, o macho pressiona seu lado ventral contra um lado da fêmea e injeta os espermatozóides em um de seus gonóporos com o segundo pleópode, que é vibratório. O macho então desloca-se ao outro lado da fêmea onde o processo é repetido. Os ovos são fertilizados internamente, numa estrutura chamada oviduto.
Como todo artrópode, os isópodes terrestres realizam mudas, tornando possível seu crescimento. Durante a estação reprodutiva, as fêmeas de espécies de isópodes terrestres passam por uma muda especial, denominada “muda ovígera”. Nesta muda, ocorre a formação de uma bolsa chamada marsúpio, onde os ovos são incubados. O marsúpio mantém-se preenchido de água, de forma que o desenvolvimento do jovem é essencialmente aquático, apesar dos hábitos terrestres dos adultos. A água e o oxigênio são enviados através de um fluido que é secretado da parede do corpo materno; as trocas gasosas ocorrem provavelmente entre a hemolinfa (fluido que tem as mesmas funções que o sangue dos vertebrados, mas de composição química diferente) e o fluido marsupial. Geralmente são incubados de algumas a várias centenas de ovos e o estágio de eclosão é uma pós-larva. Os jovens geralmente não permanecem com a fêmea após deixarem o marsúpio.
Importância Ecológica
Devido à sua atividade saprofágica (alimentam-se de matéria orgânica em decomposição), os Isópodes terrestres contribuem significativamente para a fragmentação da serrapilheira e colonização microbiana, regulando uma etapa fundamental no processo de decomposição. São considerados decompositores primários, pois atuam principalmente na quebra da matéria vegetal, promovendo sua fragmentação e assim facilitando e acelerando a ação de bactérias e fungos decompositores. O consumo de serrapilheira por esses animais estimula a comunidade microbiana do solo, promovendo um aumento da respiração e da biomassa microbiana. Conseqüentemente, ocorre um aumento da disponibilidade de macronutrientes no solo.
Esses animais apresentam a capacidade de tolerar grandes níveis de metais pesados, o que permite que sejam amplamente utilizados como modelos de estudo sobre ecotoxicologia (efeitos tóxicos causados por poluentes sobre animais – incluindo seres humanos -, vegetais ou microorganismos) e bioacumulação (acúmulo de um composto químico em altas concentrações em um organismo), sendo assim um organismo de excepcional importância para o monitoramento ambiental.
A qualidade da matéria orgânica no solo e as condições climáticas do ambiente interferem diretamente no desenvolvimento dos isópodes. Serrapilheiras de baixa qualidade ou contaminadas com metais pesados são menos consumidas, resultando em menor assimilação, reprodução e sobrevivência. Os isópodes respondem positivamente a adição de matéria orgânica no solo, colonizando rapidamente pilhas de esterco e resíduos de cultura, mesmo quando esses possuem concentrações elevadas de xenobióticos (compostos químicos estranhos a um organismo ou sistema biológico). Em florestas manejadas pode-se observar uma alta densidade de isópodes em acúmulos de detritos de madeira sobre o solo. Aliando-se ao fato de que são capazes de promover uma perda significativa de massa da matéria orgânica depositada, é possível imaginar o manejo desses organismos para otimizar os processos de decomposição, tanto em pilhas de composto, quanto em situações de cultivo que utilizem coberturas de solo.
Além disso, as fezes do “tatuzinho” funcionam como “microesponjas” e ajudam a reter a água do solo. Os compostos orgânicos, resultado da alimentação com folhas, aumentam a conservação de umidade no solo. Assim, os tatuzinhos são organismos que também afetam processos como o ciclo da água, a ciclagem dos nutrientes e a conservação do solo, sendo importantes na conservação da biodiversidade.
Utilização como bioindicadores
A ocorrência e abundância de certas espécies de isópodes terrestres têm sido utilizadas como indicadores da qualidade de paisagens naturais e antropizadas. No entanto, ainda são necessárias pesquisas para determinar níveis de abundância e diversidade associados a cada tipo de paisagem. Existe uma tendência a maior abundancia em pradarias semi-naturais do que em ambientes florestais, que por sua vez, abrigam maior densidade que áreas agrícolas. Um estudo observou que em florestas úmidas a abundância de isópodes terrestres é bem maior do que em áreas mais secas. Cultivos anuais apresentam menor abundância desses animais, enquanto cultivos agroecológicos de maracujá e amendoim, por exemplo, apresentam uma abundância elevada, provavelmente devido ao sombreamento e ao solo rico em matéria orgânica de alta qualidade nesses ambientes, com temperatura amena e alta umidade. Plantios florestais também apresentam densidades elevadas, enquanto as menores densidades são registradas em áreas de pastagens. Entretanto, a diversidade de espécies de Isopoda existentes em áreas de agricultura e silvicultura intensivas é muito baixa provavelmente devido à alta mortalidade promovida por efeitos diretos ou indiretos do manejo, como a aplicação de inseticidas e herbicidas. Essa diminuição da diversidade pode levar a prejuízos na agricultura.
Além dos parâmetros de diversidade e abundância usados como bioindicadores da qualidade do ambiente, os isópodes terrestres tem sido muito utilizados em pesquisas sobre contaminação e bioacumulação de metais pesados no solo. Isso porque são animais relativamente grandes, abundantes e fáceis de manter em laboratório, além de serem capazes de acumular altos níveis de cobre e outros metais pesados através da imobilização desses metais. O acúmulo ocorre em um órgão chamado hepatopâncreas, responsável por produzir enzimas para o metabolismo e estocar substâncias de reserva. Em resposta à contaminação, os animais passam a apresentar comportamentos de rejeição ao alimento, acumulação ou excreção, em intensidades variáveis para cada espécie.
Danos à agricultura
A diversidade, abundância e atividade desses animais devem ser estimuladas, pois são extremamente benéficos ao solo devido a seu papel essencial na decomposição de material orgânico Deve-se considerar o potencial dos isópodes terrestres em agroecossistemas, principalmente os conservacionistas.
Menos de 2% do total de espécies de “tatuzinhos” podem apresentar algum dano à agricultura. Isso ocorre raramente e apenas em situações em que a infestação é muito alta ou há redução na diversidade de espécies. Os danos à agricultura acontecem geralmente à noite, já que são animais de hábito predominantemente noturno. Alimentam-se então de órgãos jovens das plantas já crescidas e de plantas novas em sementeiras, cortando-as rente ao solo. Podem causar danos também a raízes. Podem se alimentar de orquidáceas, roendo as raízes e os brotos; de pimentões, cortando as plantas na base; de tomate, feijoeiro, ervilha e outras hortaliças.
As únicas espécies que podem apresentar danos à agricultura são: Armadillidium vulgare, Porcellio laevis, Porcellionides pruinosus e Benthana picta.
o Armadillidium vulgare (Figura 1): É a espécie de mais fácil reconhecimento por ser a única das quatro a apresentar a capacidade de enrolar o corpo em forma de bola, quando acuada. O corpo é convexo cinza escuro. O macho mede cerca de 13 mm e a fêmea cerca de 15 mm de comprimento. É originário da região mediterrânea, provavelmente da parte oriental. Encontra-se distribuído por diversas partes do globo, devido à ação do homem.
o Porcellio laevis (Figura 2): Caracteriza-se por ter a forma do corpo ovalada. A coloração é parda arroxeada. O macho mede cerca de 16 mm e a fêmea cerca de 17 mm de comprimento.
o Porcellionides pruinosus (Figura 3): É uma espécie muito semelhante à anterior, possuindo uma maior contração do metassoma em relação ao mesossoma e apresenta os lobos laterais da cabeça menos pronunciados que os de P. laevis. A cor do corpo é parda arroxeada apresentando uma linha clara mediana na porção dorsal do metassoma. O macho mede cerca de 11 mm e a fêmea cerca de 13 mm de comprimento. Originário da região mediterrânea oriental, além de povoar todas as regiões cultivadas pelo homem, ocorre também em regiões desérticas.
o Benthana picta (Figura 4): Possui corpo convexo de forma ovalada. As antenas apresentam o flagelo com três artículos. A cor é amarela esverdeada com manchas claras espalhadas pelo corpo. O macho mede cerca de 11 mm e as fêmeas 12 mm de comprimento. Este isópode tem sua distribuição assinalada para a Argentina e Brasil.